quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Quem não gosta de Barthes, bom sujeito não é...

A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiscretamente, colocar em evidência um significado único que é "eu te desejo", e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer duraro comentário ao qual submeto a relação. (BARTHES, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Rio de Janeiro: Francisco Alves. 1984. 4 ed, p.64)

No intuito de ilustrar o conceito de linguagem, Roland Barthes, no fragmento supracitado, vale-se de analogias com os aspectos físicos do corpo, obedientes a comandos do ciente e do inconsciente, passíveis de desejos e carentes de necessidades, e, desta forma, mostra que  linguagem é viva e dotada de movimentos. Assim, esclarece como a mesma ultrapassa, no âmbito do discurso, a sua mera forma canônica e gramatical.
A "linguagem como pele" apresenta-se com um caráter tátil, não só exposta ao tato alheio como também dotada da capacidade de estimular o tato do outro, bastando, com este, entrar em contato. Esta seria, portanto, a atividade discursiva, o "roçar". A "emoção de um duplo contato" configura-se na realização plena do discurso, que desperta os mais variados sentidos que as palavras podem adquirir - condição dependente somente da situação enunciativo-discursiva, onde enunciador e enunciatário explorarão as possibilidades semióticas da linguagem.

(...) o leitor é aquela personagem que está no palco (mesmo clandestinamente) e que sozinha ouve o que cada um dos parceiros do diálogo não ouve; sua escuta é dupla (e, portanto, virtualmente múltipla). (...) Essa imaginação de um leitor total - quer dizer, totalmente múltiplo, paragramático - tem talvez uma coisa de útil: permite entrever o que se poderia chamar de Paradoxo do leitor; admite-se comumente que ler é decodificar: letras, palavras, sentidos, estruturas, e isso é incontestável; mas acumulando as decodificações, já que a leitura é, de direito, infinita, tirando a trava do sentido, pondo a leitura em roda livre (o que é a sua vocação estrutural), o leitor é tomado por uma inversão dialética: finalmente, ele não decodifica, ele sobrecodifica; não decifra, produz, amontoa linguagens, deixa-se infinita e incansavelmente atravessar por elas: ele é essa travessia. (BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p.41)

Conceber a idéia da existência de um leitor total, livre de condicionamentos e previsto no processo composicional, leva-o a desempenhar o papel onipresente de um expectator que, mesmo virtual, interage e participa do que lê, e é o único sujeito no contexto de enunciação que tudo pode saber. É aquele cujo autor não detém domínio algum; daí, infere-se o referido "Paradoxo do leitor", que estende o ato de leitura como acúmulo, para além da decodificação da superfície textual. A cada leitura, seja do mesmo texto, seja de um texto completamente novo, independente dos graus de dificuldade, há sempre uma descoberta dentro de um processo de produção e criação de sentidos que corre ad aeternum: é o amontoado de linguagens, é a sobrecodificação. Na observância deste aspecto, vemos o leitor total como a travessia da linguagem. 

Lendo um texto referido por Stendhal (mas que não é dele), encontro nele Proust. (...) Alhures, mas da mesma maneira, em Flaubert são as macieiras normandas em flor que leio a partir de Proust. (...) Compreendo que a obra de Proust é, ao menos para mim, a obra de referência, a mathesis geral, a mandala de toda cosmogonia literária - como o eram as cartas de Mme de Sévigné para a avó do narrador, os romances de cavalaria para D. Quixote, etc; isto não quer de modo algum dizer que sou um "especialista" de Proust: Proust é o que me ocorre, não é o que eu chamo; não é uma "autoridade"; é simplesmente uma lembrança circular. (BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2008. 2 reimpr. da 4 ed de 2004, pp.44-45)

Neste fragmento, retirado de obra cuja teoria elaborada dedica-se a elucidar questões sobre o processo composicional – e.g. a fruição e o prazer do texto e no texto –, levanta-se a questão da “sombra” que, no entendimento de Roland Barthes, é inata e necessária a todo texto de fruição. Trata-se da “mathesis geral” do texto, seus antepassados, sua história e identidade, sem a qual o texto não se realizaria substancialmente. O texto, em si, não afirma escancaradamente suas raízes ao leitor, bem como não as notamos no conteúdo do mesmo; o que ocorre é uma sugestiva alusão às referências basilares perceptíveis através dos mais diversos pormenores: traços estilísticos específicos como tons de linguagem e tratos de enredo, preferências de temática ou gênero literário. Assim, compreende-se como D. Quixote alude, mas não se iguala, aos romances de cavalaria, ou Proust ocorre ao leitor ao ler o texto referido por Stendhal. É a “lembrança circular” do ato de leitura, que parte do presente, retoma o passado e retorna ao presente, realizando-o.

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