O Sexo ácido de André Sant’Anna pode nada ter de atraente e excitante, pelo menos nos termos sensuais reconhecidos pelo senso comum. Em seu livro, o espaço de intimidade entre casais que se amam, quartetos de amantes – e cocaína –, ou, ainda, apenas amigos que apreciam algumas porções de pornografia, calabresa e provolone à milanesa, transmuta-se num grande divã social por onde desfilam os traços mais mal-acabados e desumanos do perfil da atualidade; relativizam-se os valores, evapora-se a solidez de quaisquer relações sociais, e, neste início, achata-se a pirâmide hierárquica da sociedade, quando, de repente, vencedores e perdedores da corrida diária pelo sucesso, encontram-se juntos, apertados num elevador de shopping center, onde começa a narrativa.
Enquanto o Ascensorista De Bigode cochila ao som dos da-das e du-du-dus de Ray Conniff, orações coordenadas, predominantes na narrativa, atribuem rapidez à tessitura textual, e nos remetem à pressa cotidiana, apresentam-nos os protagonistas das pequenas crônicas do dia-a-dia desenvolvidas nos capítulos inominados subsequentes. Como os capítulos, os protagonistas – salvo exceções como, por exemplo, Marcelo, e que, mesmo assim, é apontado como “jovem marido” na primeira menção a sua pessoa – têm seus prenomes e sobrenomes suprimidos e substituídos, junto a suas respectivas personalidades, reduzidos à adjetivação rala e superficial, escrita como nome próprio. Em Sexo, diferente da Gramática Normativa, a adjetivação nomeia e caracteriza.
Ao saírem do elevador, momento em que dividem algo em comum de maneira mais espontânea, e que há a sugestão da existência e substancialidade das relações humanas – os constrangimentos causados pela proximidade levada ao excesso, tais como pisadas nos pés, cotovelos que tocam seios alheios maliciosa e intencionalmente, e pênis acanhados que se encaixam entre as bandas de mães de bebês babões –, as personagens espalham-se. Curioso movimento. Como portadores de males sociais, dispersam-se exclusivamente no intuito inconsciente de promover a epidemia moral sofrida pela sociedade, grande crítica de Sexo. O ato de ser, em Sexo, ganha, assim, um novo significado.
O trabalho com estereótipos e crenças baseadas em traços culturais desenvolve linhas de raciocínio que auto-criticam a conduta social, induzindo as personagens sempre a situações por vezes previsíveis, e outras não, mas quase todas tragicômicas. Duas delas, por exemplo, contrapõem-se ao levantar a questão racial junto a sócio-econômica: a do Negro, Que Fedia e a do Negro, Que Não Fedia – mas que um dia já fedeu. O primeiro, pobre, sustentado por um subemprego e sexualmente reprimido pela sociedade por sua aparência grotesca, condição imposta pela miséria, excita-se com revistas pornográficas que lhe proporcionam, em fantasia, momentos que a realidade, diante das condições, jamais cederia. Um abismo profundo entre o desejo e a sua realização. Seu sonho restringe-se a desejar a Trocadora Do Ônibus No Qual Ele, Negro, Que Fedia, Voltava Para Casa Todos Os Dias, Às Seis Horas Da Tarde, que também era negra, e cuja aparência estava longe da socialmente celebrada. Para, porém, aproximar-se da Trocadora, sem correr o risco de apanhar de seu filho violento, o pobre Negro, Que Fedia, teve de converter-se à igreja. Hipocrisias à parte, são valores culturais de extrato social. O sexo feito pelos dois, celebrado pela entrega a Cristo, ao final do livro, assim como o casal, também fedia.
Há outro “tipo” de negro, em Sexo, o chamado Negro Que Não Fedia. Este era astro internacional de reagge, que não só faz sexo com suas esposas negras e que também não fediam, como também fizera sexo com a Apresentadora do Programa de Variedades Da Televisão, Que Era Loura. A cena de sexo entre os dois mostra a clássica e bem-vista idéia do negro embranquecido. Cito:
A boca da Apresentadora Do Programa de Variedades Da Televisão, Que Era Loura, deslizando pelo pau do Negro, Que Não fedia, caso fosse fotografada naquele instante, poderia fazer parte de um moderno ensaio fotográfico erótico em preto-e-branco, digno dos mais sensíveis fotógrafos de arte. Esse possível ensaio fotográfico seria editado em capa dura coberta por acetato, onde o nome do fotógrafo e o título Contrastes estariam impressos com tipologia Helvética. (SANT’ANNA, p.221)
Há, portanto, de acordo com a idéia cultural de relação entre pessoas ditas brancas e negras, certa beleza neste contraste. Porém, isto só ocorre porque o negro em questão não é o Negro Que Fedia. O Negro, Que Não Fedia, já vivera uma infância pobre como negrinho fedorento, e, à semelhança do Negro Que Fedia, também passou por uma conversão, neste caso, para deixar de feder: tornou-se adepto do imperador etíope, Hailé Selassié – o Leão de Judá, tido como símbolo religioso, cujo legado consiste em liderar os negros de volta à África. No entanto, no ápice do processo de embranquecimento, O Negro Que Não Fedia, ludibriado pela luxúria exalada da alva carne da Apresentadora,
(...) não podia mais crer no paraíso afro-bíblico do imperador etíope Hailé Selassié – o Leão de Judá. O Negro, Que Não Fedia, não queria retornar à África. Então, o Negro, Que Não Fedia, entregou seu coração aos irmãos Warner. (SANT’ANNA, p.227)
Ao final, revela-se, implacavelmente, a igualdade étnica entre ambos os negros e que a sociedade insiste em negar: após o sexo, O Negro, Que Não Fedia, fedia (SANT’ANNA, p.227).
Outras personagens que tecerei alguns comentários, tendo em vista os estereótipos que carregam, são A Secretária Loura, Bronzeada Pelo Sol, as duas Noivas Louras, Bronzeadas Pelo Sol e a Gorda Com Cheiro de Perfume Avon.
As duas primeiras, similares em aparência e preferências de parceiros sexuais, fazem sexo com executivos, homens poderosos ou prósperos – sejam eles de óculos Ray-Ban, casados com esposas com mais de quarenta anos e uma pelanca no rosto, ou, jovens executivos de gravatas variáveis. A Secretária, cujo papel social, dentro da lógica crítica do livro, é servir de amante, tem sua maior aparição numa cena de suingue a quatro pessoas, e é classificada como a mais depravada. Neste sentido, diferem as duas Noivas, quando, em suas respectivas, idênticas e concomitantes cenas de sexo, sofrem com as tentativas falhas de seus noivos, Executivos cujas diferenças estão nas gravatas, de tentar “apimentar a relação”, baseados no que leram numa revista sobre homens e mulheres. O foco crítico, neste caso, centra-se na influência midiática na vida das pessoas, independente de se tratar de momentos frívolos ou íntimos, como o ato sexual. O conceito de amor como sentimento por outrem por suas características únicas também é jogado por terra. Ambos os Jovens Executivos dizem amar suas noivas, porém, ao final do capítulo, após o término de seus respectivos noivados, acabam, por fim, trocando de noivas – a rigor, mulheres exatamente iguais.
Possivelmente, o extremo oposto das senhoras citadas anteriormente é a Gorda Com Cheiro De Perfume Avon, e a análise que dela se pode fazer tangencia, inevitavelmente, suas práticas sexuais. A Gorda não é uma mulher que ama, bem como também não é desejável pela maioria esmagadora dos homens, pois não se enquadra nos padrões de “beleza-objeto”, loura e bronzeada pelo sol. Seu nome peculiar define-se após sua primeira aparição, quando o autor afirma que, no elevador, ela “fedia” a perfume Avon, depreciação baseada na idéia de um “perfume que não perfuma”. É possível, então, assumir que as louras bronzeadas pelo sol, que definitivamente não são gordas, não usariam o perfume Avon, caso contrário seriam nomeadas de outra forma.
A Gorda Com Cheiro de Perfume Avon, para satisfazer seus desejos sexuais, levava o Chefe da Expedição da Firma, da firma onde trabalhava, para comer calabresa e provolone à milanesa, e, seguidamente, ir com ela a um motel. Ambos não sentiam atrações sexuais arrebatadoras um pelo outro, porém, como marginais da opressão estética vigente, definiram como tal a sua relação. A falta de sorte, segundo o narrador, da Gorda, era nunca ter esbarrado com a minoria masculina que se sente atraída por mulheres gordas: neste caso, o japonês da IBM. Minoria curiosa, um homem poderoso como os executivos, mas que, por fazer parte justamente do grupo que culturalmente se conhece pelas dimensões pequenas do pênis, não é chamado de Executivo. As fantasias sexuais do Japonês Da IBM são ocultas, pois não compartilha com a maioria masculina o gosto por mulheres louras, bronzeadas pelo sol. A crença na importância do tamanho do pênis é uma das mais populares em nossa cultura urbana. Cito o parágrafo de SANT’ANNA dedicado somente a esta reflexão:
O pau do Negro, Que Não Fedia, era maior que o pau do Jovem Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alaranjadas, que era mais ou menos do mesmo tamanho que o pau do Gerente de Marketing Da Multinacional Que Fabricava Camisinhas. O pau do Negro, Que Fedia, era maior que o pau do Negro, Que Não Fedia, que o pau do Jovem Executivo De Gravata Vinho Com Listras Diagonais Alarajadas, que o pau do Executivo De Óculos Ray-Ban e que o pau do Gerente de Marketing Da Multinacional Que Fabricava Camisinhas. O menor de todos era o pau dO Adolescente Meio Hippie. (SANT’ANNA, p.157)
O pobre Adolescente Meio Hippie, tão jovem, já é atormentado por esta convicção masculina. Prestes a ter sua primeira experiência sexual, numa viagem planejada com sua namorada amada, A Adolescente Meio Hippie – que, talvez por ser só meio hippie se permitisse ler a revista Capricho, voltada para adolescentes nada hippies –, O Adolescente estava nervoso, pois a Adolescente poderia achar seu pênis pequeno demais.
Uma injeção de sarcasmo que mostra como pode haver a possibilidade real, no imaginário de um adolescente de 16 anos, de sua potencial primeira parceira sexual, uma adolescente de 14 anos, virgem, poder ter algum padrão de referência que a levasse a julgar o pênis de seu primeiro parceiro pequeno demais. É a extrapolação da superficialidade levada ao ridículo: a maior preocupação da Adolescente, que logo passa, é a possível dor que pode vir a sentir.
Quando finalmente os dois vêem-se juntos, dentro da barraca de camping, e praticam o sexo constrangedor porque incipiente, o narrador surpreende-nos quando afirma: O pequeno pau dO Adolescente Meio Hippie estava duro (...) (SANT’ANNA, P.274). Portanto, o medo do Adolescente concretiza-se na realização do ato: seu pênis é, de fato, pequeno demais.
O Adolescente frustra-se porque acha a Adolescente “muito paradona”, provavelmente porque ela achara seu pênis pequeno. O inesperado de qualquer piada vem fechar o quadro: o Adolescente, que sonhava em ser músico e viver na Jamaica fumando maconha, sai da barraca nu, com seu saxofone, e começa a tocar “All Blues” de Miles Davis. Neste momento, Dentro da barraca, nua, A Adolescente Meio Hippie percebeu que o Adolescente Meio Hippie era bem ruinzinho ao saxofone. (SANT’ANNA, p.276)
Destarte, o sexo das planas personagens de Sexo desvela a intimidade de uma sociedade cujos laços afetivos afrouxam-se e dão lugar ao mero suprimento de necessidades físicas do universo imaginário da rapidez, da propaganda, do descartável e da volubilidade geral do presente civilizado. A própria macroestrutura da narrativa – apresentação de personagens e as respectivas cenas de sexo –, pode ser vista analogamente como alegoria do funcionamento destas relações.
D.M.