O primeiro romance de Chico Buarque se desenvolve sobre um enredo tenso, disforme, incerto e aflitivo, que é apresentado ao leitor pelos olhos – e pensamentos – de um personagem inominado, igualmente disforme e livre de apresentações formais, o que mais imprime à leitura a sensação de penetrar o psicológico desta primeira pessoa que narra e que, logicamente, neste processo, não se ocuparia em apresentar-se a si mesma; é neste pensamento que somos imersos em Estorvo (BUARQUE, 1991), cujo título, aliás, se mostra necessário e suficiente para resumir, em todas as instâncias, o personagem, que protagoniza e motiva as desventuras e peripécias apresentadas.
Através do olho mágico
A primeira cena do romance já mostra – e demonstra – claramente que a nitidez da realidade é inconstante e que aquilo que se infere, ainda que não seja fato, pode influenciar a existência e movê-la até mais do que os próprios fatos. Os olhos deste homem, que é um nítido antagonista da realidade e da sobriedade, enxergam, não além da razão, mas apesar dela, como que em paralelo a ela, desconsiderando os parâmetros racionais da realidade e reconstruindo a realidade através de seus próprios parâmetros.
O olhar do personagem, particular a ponto de relativizar a realidade e possibilitar a aceitação de uma outra, singular, própria, de acordo com sua percepção e seu juízo, este olhar observa o mundo e cria uma vida diferente da real, um sentido por entre esta realidade, preenchendo lacunas com pensamentos e deduções que seguem uma lógica própria e fazendo destes delírios sua realidade. Atenho-me na definição deste olhar, pois é ele – junto com suas atitudes, que nada são além de reações deste olhar - que dá a transparecer ao leitor a impressão do personagem sobre o mundo em que vive, e compõe a obra, filtrando, reanalisando e apresentando este singular mundo recriado.
O caminho percorrido e narrado pelo personagem é iluminado pela desconfiança e, a cada episódio, salta aos olhos aquilo que, de uma cena, ficaria no fundo, seria obumbrado pela trama principal e minguaria, como a composição de um cenário que se perde na narrativa. Esta atenção psicótica conferida a elementos aparentemente irrelevantes inquieta o personagem, que, aficionado pelo mínimo das coisas, encontra conflitos nas mais simples situações; conflitos para os quais a verdade bastaria para desvelar as falsas impressões, mas a obra não nos permite julgar as impressões do personagem como falsas ou exageradas; a leitura caminha junto com o personagem, e todo e qualquer leve incômodo acaba por se converter na psicalgia do estorvo, a partir da qual, esta esguelha revela o insuportável no limite das coisas.
O estorvo age no limite ignorado das coisas, exatamente onde há o equilíbrio instável da realidade; e o olhar que pousa sobre este limite, inquieta-se. O ser que desperta da inquietude deste olhar se mostra transtornado de tal maneira que se configura apenas um caminho possível para este observador incauto: ele é forçado por seu próprio olhar a viver no limite, das coisas, das pessoas e da própria razão. É o homem que vive à margem, não da sociedade, mas da vida; o personagem vive à margem da família, das relações sociais e dos sentimentos, a tal ponto e de tal maneira que, seguindo o fluxo de suas ações aparentemente comuns a ele e rotineiras, se faz patente o deslocamento de sua posição na realidade em si.
Dentro deste ser único, singular em suas anomalias psicóticas, é que somos convidados a percorrer a trajetória do livro; através da tortuosidade do olho incauto e rude do personagem, somos levados a sentir a inquietude do estorvo da vida. E, este mesmo homem, cujo olhar pousou sobre o equilíbrio instável da realidade, se torna, ele próprio, o limite do homem sob os olhos do outro, de modo a se configurar, ele mesmo, a figura física, real e palpável do estorvo; uma figura tanto mais incômoda e, por consequência, menos ignorável que o limite insólito e tênue das coisas pequenas – ou, talvez, apequenadas por olhos que simplesmente não se atormentam com os efeitos de um olho mágico.
Um abalo inabalável
Com uma leitura desconfortável, porém, de alguma forma, equilibrada neste desconforto e paradoxalmente suave e despreocupada, o leitor é levado a caminhar com este homem e, através de seu olhar, conhecer sua psique e suas psicalgias, frutos e reflexos da inquietude e da instabilidade do estorvo da vida. O personagem vive a permanente suspeição da realidade e, como que vítima de uma conspiração do mundo, ele foge, abalado e atordoado, de tudo o que existe, com tamanho ímpeto e determinação, que, ao adentrar seu refúgio, permite-se a sensação de entrar para fora, como alguém que escapole para o oco do mundo.
Seu abalo é constante e pleno; não há nada que resgate a sensatez do personagem e o traga de volta a realidade. É o abalo esquizofrênico de um estorvo somente percebido por ele, de um mal somente denunciado por seu olhar e que segue, existindo, ainda que somente para ele. Mas é justamente para ele que a aflição do mundo existe e se revela em todo e qualquer espaço; e é nele, no personagem, que se manifesta para o mundo o incômodo de uma existência torpe, que interfere na ordem de tudo o que toca, que não é descartável, que não acaba e não se pode separar em um canto da realidade. O abalo do personagem é o único elemento fixo, incorruptível e inabalável.
Há um momento da narrativa a partir do qual é possível ler para além da cena descrita; é possível fazer, por meio desta passagem, uma leitura resumida da consciência do personagem e de seu posicionamento perante tudo. É a revelação de uma realidade que o expele, que se incomoda com sua existência e luta para lhe negar enquanto, paradoxalmente, nutre com piedade e asco, sua vida, que é a revelação de um existir oposto à regra, na contra-mão do mundo.
O carro da polícia, de tanto forçar passagem, acaba dando um nó no tráfego. Cantando e girando sem sair do lugar, sua sirene mais parece uma propaganda. A calçada não comporta mais tanto público, que acorre das transversais e não gosta de me ver querendo avançar no sentido oposto. Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão. Ando prensado contra os muros, até ser expelido pela porta frouxa de um tapume. (BUARQUE. 1991 pp. 106)
M.A.